Segundo a Polícia Federal, uma carga milionária de fuzis e pistolas armazenada no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, corria risco de roubo. A notícia de 3,5 mil armas da fabricante Taurus ilhadas no terminal de exportação já tinha vazado para uma facção criminosa, que estaria planejando ousado ataque. Era preciso remover com urgência o arsenal das instalações alagadas.
O trabalho preventivo foi feito, mas por voluntários na linha de frente, que nunca deram um tiro na vida. Sequer usaram colete à prova de balas durante as oito horas de transporte das 156 caixas de armamento, em dois barcos que eles próprios custearam.
“Nos enganaram, pois fomos chamados para resgatar crianças e acabamos virando escudo humano”, relata o investidor Nicolas Vedovatto, 26 anos. Ele frisa que o grupo de cinco amigos só foi informado em cima da hora que o resgate era de armas. “Nos sentimos coagidos”, observa uma médica de 31 anos, que pede para não ser identificada. O namorado dela, um empresário de 30 anos, foi junto. Também prefere preservar a identidade.
“É surreal o que passamos. Ainda não caiu a ficha”, comenta o analista de sistemas Igor Garcia de Oliveira, 26, ao lado do empresário do setor metalúrgico Isaac Freire Lopes, 25. Sob liderança de Nicolas, os voluntários trabalharam na remoção das armas com um caminhoneiro e um barqueiro que eles contrataram.
Munido de fotos, vídeos e áudios, o grupo relata os bastidores da insólita operação, que margeia as raias do absurdo. Contam como, repentinamente, se viram em posição estratégica na delicada tarefa. Chegaram a definir rotas de navegação e a orientar sobre cuidados para não molhar as embalagens e danificar as armas.
“Estamos assustados”
Os amigos, que moram no litoral norte, reiteram que foram atraídos ao arriscado trabalho de forma enganosa. Inicialmente, representantes da Taurus teriam se identificado como voluntários que clamavam pelo resgate de crianças. Na iminência do suposto salvamento, falaram estar a serviço da empresa e revelaram o verdadeiro trabalho.
“Dias depois, nos deparamos com uma reportagem no Fantástico, onde aparecemos fazendo o transporte como se fôssemos policiais de elite. Ainda vimos, em vários sites, que essas armas eram cobiçadas por facções. E nós lá, tirando elas. Estamos assustados e muito preocupados”, salienta o investidor. Em entrevista ao programa dominical da Rede Globo, o superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, delegado Aldronei Rodrigues, enaltece o sucesso da operação.
Como surgiu o convite para a missão
Morador de Capão da Canoa, Nicolas e Igor foram para a região metropolitana na noite do último dia 5, um domingo, sem saber onde se hospedariam. “Com tantas pessoas sofrendo, pela minha experiência com resgate na água, que já fiz muito surfando, vi como obrigação levar ajuda”, diz Nicolas.
A dupla foi no carro de Igor. “Na free way, vimos uma caminhonete com vários caiaques. Emparelhamos, pedimos para baixar o vidro e começamos a conversar. Eram bombeiros, que estavam indo para Gravataí, e pediram para segui-los.” Nicolas frisa o bom acolhimento em abrigo no Colégio Dom Feliciano.
Paramentados com roupa de borracha, faca e machado, partiram para os socorros de manhã cedo. “Já no início foi muito intenso e gratificante. Conseguimos resgatar várias pessoas e animais em Eldorado do Sul.” A dupla ganhou destaque nos salvamentos e passou a participar de vários grupos nas redes sociais.
Foi assim que veio o fatídico convite. “Recebi mensagem de um desconhecido, com entonação forte, dizendo que tinha uma demanda urgente de resgate de crianças. Era uma missão prioritária. Aquilo me comoveu muito. Logo me coloquei à disposição.”
A busca por gente, barcos e equipamentos
O homem disse que eram necessários quatro barcos e uma equipe especializada. Sensibilizado, Nicolas publicou um vídeo com pedido de apoio e voltou a Capão com o amigo para reunir os recursos, durante a quarta. Em áudio empolgado, dá retorno ao homem. “Vai ter uma médica com a gente. Pergunta se as crianças estão feridas e se precisam de atendimento de primeiros socorros.”
A profissional da saúde, que é velejadora, logo se engajou. “Já vinha a semana inteira ajudando em abrigos. Consegui uma colega para me substituir no atendimento. Estava determinada a atuar no resgate às crianças.” O namorado empresário, que é surfista, auxiliou na logística.
O grupo partiu às 4 horas de quinta-feira (9) em dois automóveis e um caminhão com dois barcos. Levou um conjunto de equipamentos táticos, como machados, boias, cordas e coletes. Informado sobre a quantidade de embarcações, o homem que fez o convite pedia para conseguir mais duas.
“Entrei em contato com conhecidos e perguntei sobre a possibilidade do apoio de um policial militar no salvamento às crianças, pois poderia haver episódios de violência”, acrescenta a médica. Igor deixou uma equipe da Defesa Civil em alerta para reforçar a operação. “Ficaram aguardando o endereço”, recorda.
O encontro pessoal e a revelação estarrecedora
O ponto de encontro era em um posto de combustíveis em Canoas, às 7 horas, onde seria dito o local de salvamento das crianças. Foi o primeiro contato pessoal com o homem das mensagens, que aguardava o grupo ao lado de uma mulher. Ela se apresentava como coordenadora da ação voluntária.
Em meio às primeiras conversas, ansiosos para irem ao salvamento, os voluntários ouviram um comunicado estarrecedor da mulher. “Trabalho na Taurus. O resgate que vocês vão fazer não é mais de crianças, e sim de armas.” Ainda assimilando a surpresa, os voluntários se negaram em participar.
“Travei. Disse que não iria. Ela argumentou que precisava de civis e que haveria policiais à paisana. Pedimos identificação e ela nos mostrou uma carteira de trabalho da Taurus”, recorda a médica. Apoiada pelos amigos, ela insistiu em não ir. “Daí a mulher disse que era tão importante quanto salvar crianças, pois evitaria que armas fossem parar nas mãos de bandidos.”
O grupo estava desconfiado e até preocupado que poderia ser vítima de um sequestro. “Mas não tinha mais como desistir porque nos disseram que agora a gente estava sabendo de algo muito sigiloso e não podia voltar atrás. Não iam deixar a gente sair. Foi uma coação total e apelaram para o emocional, dizendo que ia ajudar muita gente”, denuncia Nicolas. “Acabamos concordando quando ela disse que a partida seria no posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF), na free way, o que nos passou uma certa sensação de segurança”, comenta a médica.
Só que a unidade policial estava abaixo d´água. Só havia patrulheiros do lado de fora. O caminhão com os barcos chegou antes. Os voluntários pegaram um retorno errado e chegaram depois. A coordenadora frisou que a operação era de sigilo absoluto. O homem das mensagens não foi mais visto. “Perguntei se receberíamos coletes à prova de balas e ela respondeu que não”, frisa a médica.
Atiradores de elite e portão arrombado
O percurso da PRF ao aeroporto foi feito em dois barcos. Os voluntários em um com motor potente, rebocando outro com a coordenadora e outro suposto funcionário da Taurus. “Ela (coordenadora) disse para não usar celular e até para não fazer movimentos bruscos, pois estávamos na linha de tiro de snipers (atiradores de elite) da Polícia Federal no topo dos prédios”, enfatiza a médica. Os voluntários confirmam que avistaram um em prontidão, deitado em um telhado, de roupas camufladas e com arma de grosso calibre apontada para as águas.
O primeiro contato com policiais federais ocorreu na entrada do aeroporto. “Havia muitos. Isso me deixou mais tranquila”, suspira a médica. Um agente e os voluntários precisaram arrombar o portão e quebrar um engate de metal para a passagem dos barcos. “Vocês são funcionários da Taurus?”, perguntou um policial. “Não, sou médica. Vim para resgatar crianças.” Ao ouvir que os voluntários tinham sido “enganados”, o agente teria sorrido. “A Taurus fazendo isso.”
Primeira leva foi sem escolta policial
No terminal internacional de cargas, havia cerca de dez funcionários da indústria bélica. Os voluntários chegaram a ver notas fiscais das armas retidas por causa da enchente. “A gente percebeu que o pessoal estava perdido sobre como transportar a carga de barco. Daí organizamos uma logística”, recorda Igor.
Eram caixas pesadas, muitas delas de 60 quilos. Tinham que ser levadas a um caminhão branco, sem identificação, estacionado em área transitável na rua. Por volta das 9 horas, começou o descarregamento. “A primeira embarcação foi a nossa, com nove caixas, sem nenhuma escolta armada até esse caminhão. Isso é gritante na desorganização”, afirma Nicolas.
O Comando de Operações Táticas (COT) da Polícia Federal, encarregado da segurança da remoção bélica, chegou quando a primeira leva já tinha sido transportada. “Foram sem a gente?”, indagou um agente, com as mãos na cabeça. “As coisas foram se organizando aos poucos, mas ainda assim sem muito controle”, acrescenta o investidor.
Igor relata que cuidava sozinho de pilhas de caixas no portão do terminal. “O pessoal da Taurus falou para não me preocupar, porque tinha um sniper mirando na minha direção para cuidar da carga. A gente montou uma fila de palets para agilizar os carregamentos quando cada barco chegava.”
Os voluntários ainda atentaram para a preservação do material. “Cuidamos da integridade das caixas. Sugerimos forrar o fundo das embarcações para não molhar. Mesmo assim, uma chegou a molhar e se abriu”, expõe Nicolas.
Cansaço, fome, sede e mais civis
De acordo com Nicolas, mais voluntários foram recrutados durante o dia. “Viram que ia levar noite a dentro se fosse só nós. Então passaram a vir outros civis, só que eles não sabiam o que estavam carregando. Eu preferia não estar sabendo também.”
Em meio às embarcações com armas, passavam outras sem nenhuma relação com a operação. O trânsito era livre, sem isolamento. “Um amigo meu, que fazia rondas na empresa dele, porque estavam roubando, chegou a abanar e me chamar pelo nome”, destaca a médica. Ela conta que os voluntários receberam água e comida só à tarde. O resgate foi concluído quando já escurecia, depois das 17 horas. “Foi muito cansativo.”
Ela conta que os policiais pensavam que ela e os amigos, pelo grau de envolvimento com a logística, eram funcionários da Taurus. “Ficaram estarrecidos quando dissemos que não. A relação com os policiais foi muito tranquila depois de alguns mal-entendidos. Foram muito queridos com a gente. Passei orientações de profilaxia a eles, porque havia muitos parasitas visíveis na água.”
Conforme a médica, os agentes aparentavam esgotamento. “Estavam exaustos, há muitos dias ali, contando as horas para irem embora.” O caminhão que recebeu as armas estava cercado de policiais com uniforme preto e fortemente armados. O destino das armas é sigiloso.
Gozações e espanto de parentes
“Como foi o resgate das crianças?”, era o que Nicolas mais ouvia quando retornou ao abrigo. “Eu desconversava e tinha que lidar com gozações, porque as pessoas viram meu vídeo com pedido de ajuda para resgate das crianças e não ouviram mais nada a respeito. Mesmo tendo sido feito de bobo por uma empresa que ignorou os protocolos de segurança e nos expôs a risco extremo, eu não falava sobre as armas. Despistava, mesmo com as piadas.”
O investidor frisa que só passou a tocar no assunto quando se viu na televisão. “Lembro que o pessoal da Taurus ficou irritado com a chegada da equipe de reportagem do Fantástico”, comenta ele. Os voluntários relatam que amigos e parentes os reconheceram no programa. “No trabalho, as pessoas me perguntavam, chocadas, como eu tinha parado em um negócio desses da polícia. Ainda bem que contei ao meu pai antes da reportagem ir ao ar, pois, para ele, eu tinha saído para resgatar crianças. Ele ainda me xingou. Disse que não era para estar me metendo nesse tipo de coisa”, diz a médica.
O grupo segue nas ações voluntárias decorrentes das enchentes. Antes, precisam consertar o motor do barco que conseguiram emprestado. “Os custos são o de menos, porque eram para uma causa nobre. Infelizmente, nos pegaram de uma forma no mínimo questionável para outro objetivo. E se entre nós houvesse alguém ligado ao crime organizado? Poderia tranquilamente ter ligado e avisado uma quadrilha bem antes da retirada das armas”, reflete Nicolas.
O que diz a PF
Questionada se tinha conhecimento de voluntários na operação e por que não teria tomado providências ao constatar falta de segurança, a Polícia Federal emitiu nota à reportagem na tarde desta quarta-feira (15): “A retirada das armas que estavam depositadas no Aeroporto Internacional Salgado Filho foi coordenada pela Polícia Federal, por meio do Comando de Operações Táticas (COT), grupo especializado em situações de risco, em articulação com a Fraport, administradora do Aeroporto Internacional Salgado Filho, e com a empresa proprietária da carga, sendo esses, exclusivamente, os participantes envolvidos com a logística de remoção do armamento”.
Taurus confirma que a “recrutadora” é funcionária
A mulher que se encontrou com os voluntários e estaria por trás do recrutamento deles é realmente funcionária da empresa, conforme a Taurus. A fábrica observa, no entanto, que ela não ocupa cargo de gestão. Também em comunicado nesta quarta à tarde, a Taurus diz que não conhece o homem que fez o primeiro contato com os voluntários:
“A Taurus é uma Empresa Estratégica de Defesa, credenciada pelo Ministério da Defesa, atua há 85 anos de acordo com as diretrizes legais e regulatórias, e esclarece que a operação de retirada das armas no aeroporto foi coordenada na parte fluvial pelo Comando de Operações Táticas da Polícia Federal (COT) e na parte terrestre com veículo de transportadora credenciada pelo Exército Brasileiro, escoltada por dois veículos de segurança privada armados e acompanhada por três viaturas da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) da Policia Civil do Rio Grande do Sul. A conferência e manuseio das armas foram feitas por 12 funcionários da Taurus, da área de logística, devidamente capacitados”. Com informações ABC+.