A morte da menina Maria Liz Ferreira Morais, de quatro anos, em Blumenau (SC), segue cercada por dúvidas, laudos médicos complexos e decisões judiciais que geram debate sobre os limites entre a presunção de inocência e a proteção à infância.
A reportagem do Jornal Razão teve acesso exclusivo a informações que revelam uma cronologia detalhada do caso e as razões que levaram à soltura do padrasto, investigado por suspeita de agressão.
A internação e o quadro clínico grave
Maria Liz foi internada no Hospital Santo Antônio, em Blumenau, no dia 29 de outubro, levada pelo padrasto, de 32 anos, natural de Salvador (BA). Segundo o relato do próprio homem aos médicos, a criança teria convulsionado em casa, apresentando vômitos e perda de consciência.
A equipe médica, no entanto, observou lesões incompatíveis com o relato inicial e acionou a Polícia Civil para investigação.
A menina deu entrada na unidade em estado crítico, com pontuação 7 na Escala de Coma de Glasgow, o que indica comprometimento neurológico severo. O laudo pericial, assinado por um profissional legista, descreve um quadro de traumatismo cranioencefálico grave, caracterizado por extenso hematoma subdural na convexidade cerebral esquerda, hemorragia subaracnoide difusa, edema cerebral generalizado e desvio de 13 mm da linha média — lesões compatíveis com impacto físico de alta energia.
Diante do risco de morte, a equipe médica realizou uma craniectomia descompressiva de urgência, removendo parte do osso craniano para aliviar a pressão intracraniana. O fragmento foi implantado no abdômen da paciente, procedimento padrão em casos desse tipo. Mesmo após a cirurgia, o quadro permaneceu gravíssimo e, após uma semana de internação, Maria Liz não resistiu e teve o óbito confirmado na tarde de terça-feira (4).
O laudo pericial e as marcas no corpo
O laudo da Polícia Científica de Blumenau confirma a presença de lesões externas em diversas partes do corpo. Entre elas, equimoses na bochecha direita, nádega, crista ilíaca e dorso. Havia também ferimento na língua, compatível com trauma contuso ou queda. A perita classificou a causa provável como “energia mecânica – meio contundente”, o que inclui pancadas, quedas ou impacto por objeto.
O documento ainda registra atendimentos médicos anteriores, realizados no mesmo hospital nos dias 1º, 8 e 17 de outubro, todos relacionados a traumatismos na cabeça.
Na primeira ocorrência, o padrasto relatou que a menina havia sido derrubada por um cachorro, o que justificou um leve edema de face e couro cabeludo. Nas semanas seguintes, exames de tomografia confirmaram o agravamento progressivo do quadro, com aparecimento de novo hematoma subgaleal e sinais de inchaço cerebral.
A médica legista ressaltou que não foi possível estabelecer nexo causal entre as lesões antigas e o trauma fatal, e que o quadro observado em 29 de outubro apresentava características recentes. A perícia concluiu, porém, que as lesões foram potencialmente letais e exigiam investigação aprofundada para determinar origem e autoria.
Prisão, audiência e decisão judicial
Diante do diagnóstico, o padrasto foi preso em flagrante pela Polícia Civil e levado à Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso. O caso foi apresentado à Vara Regional de Garantias de Blumenau, sob responsabilidade do juiz Gustavo Bristot de Mello.
Na audiência de custódia, realizada em 30 de outubro, o magistrado deixou de homologar o flagrante, determinando a libertação imediata de Ícaro. A decisão foi baseada porque, segundo o juiz, houve ausência de indícios concretos de autoria e na existência de histórico médico anterior, que, segundo a avaliação judicial, poderia indicar um quadro clínico evolutivo e não uma agressão isolada.
O juiz destacou ainda que o próprio investigado foi quem acionou o socorro e levou a criança ao hospital, comportamento considerado incompatível com a tentativa de ocultação de crime. A mãe confirmou em depoimento que nunca presenciou agressões e que o companheiro sempre teve bom relacionamento com a filha.
“Não há elementos probatórios suficientes à demonstração inequívoca dos indícios de autoria delitiva”, escreveu o magistrado.
“A investigação deve prosseguir com perícias complementares e análise do histórico médico completo.”
Com a decisão, Ícaro foi colocado em liberdade, mas permanece como investigado no inquérito conduzido pela Polícia Civil.
Com a confirmação da morte, o caso poderá ser tratado como homicídio, e o inquérito foi remetido à 1ª Vara Criminal de Blumenau, em conformidade com a Lei Henry Borel, que determina prioridade nos crimes contra crianças e adolescentes. A Polícia Civil aguarda os laudos complementares de necropsia, radiografias e exames oftalmológicos, que poderão confirmar ou afastar a hipótese de violência doméstica.
A investigação também busca esclarecer se houve falha médica ou omissão nos atendimentos anteriores, já que a criança apresentou sintomas repetidos ao longo de outubro.
Um caso ainda sem resposta
Até o momento, nenhuma pessoa foi formalmente indiciada, e o laudo definitivo da causa da morte ainda não foi divulgado.
Enquanto as investigações seguem, a morte de Maria Liz levanta questionamentos sobre a eficiência da rede de proteção à infância, a celeridade das perícias e o equilíbrio entre garantias individuais e prevenção de tragédias. O que se sabe é que a menina foi vítima de forte trauma craniano recente, cuja origem permanece sob apuração.
O desfecho desse caso dependerá agora dos laudos finais e da conclusão do inquérito policial, que deve apontar se Maria Liz morreu em consequência de violência doméstica, acidente evolutivo não detectado a tempo ou falha no diagnóstico anterior. É mais uma da série de respostas que Santa Catarina vem sendo forçada a esperar.